Pobres lotam cadeias, mas grandes entopem os tribunais
Marcelo Semer
De São Paulo 
    Na mesma semana em que a polícia divulgou suspeitas que o  médico Roger Abdelmassih esteja foragido no Líbano, o ministro Luiz Fux,  do STF, negou liberdade a um condenado pelo furto de seis barras de  chocolate.
    Mesmo reconhecendo o valor ínfimo, Fux rejeitou o trancamento da ação,  porque o réu seria "useiro e vezeiro" na prática do crime. 
   Roger Abdelmassih teve mais sorte. Foi condenado pela Justiça paulista a  278 anos de reclusão, por violências sexuais que teria praticado  durante anos contra dezenas de mulheres que buscavam seu consultório  para reprodução assistida. Nas férias forenses, ganhou a liberdade em  liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes. 
    Nem tudo está perdido, porém. 
   O furtador de chocolates não fugiu, e em relação a ele, o direito penal  poderá ser aplicado em toda a sua plenitude: um ano e três meses de  reclusão. Afinal, por sua reincidência, a insignificância deixou de ser  insignificante. 
    Nos últimos anos, o STF tem sido reputado como o tribunal mais  garantista do país no âmbito criminal - o que fez a decisão relatada por  Fux chocar ainda mais a comunidade jurídica. 
Recentemente, o tribunal tomou uma posição reclamada por doutrinadores,  proibindo a decretação da prisão, quando ainda existam recursos  pendentes. É com base neste entendimento, por exemplo, que o jornalista  Pimenta Neves aguarda solto o desenrolar de seus vários apelos. 
    A decisão tem justificativa na concepção do processo penal no estado  democrático de direito. Todavia, o próprio STF tem sido flexível com  este padrão, quando o réu se encontra preso durante o processo. É mais  rigoroso, enfim, com quem foi preso desde o início. 
   Como a "primeira classe do direito penal" raramente é presa em  flagrante, na prática acaba sendo a principal beneficiária da  jurisprudência liberal. 
    Um acórdão do STJ fulminou inquérito policial contra empresários e  políticos, com o bem fundamentado argumento de que 'denúncia anônima' é  ilegítima para justificar a devassa telefônica. 
    Prisões de centenas de pequenos traficantes país afora, todavia, também  costumam ser justificadas por informações obtidas em denúncias anônimas.  Por meio delas, policiais revistam suspeitos na rua e pedem buscas e  apreensões. Custa crer que a jurisprudência se estenderá a todos eles. 
    Se as cadeias estão superlotadas de réus pobres, os recursos que entopem nossos tribunais têm uma origem bem diversa. 
    O Conselho Nacional de Justiça divulgou a lista dos maiores litigantes  do Judiciário, onde se encontram basicamente duas grandes espécies: o  poder público e os bancos. 
    Como assinalou o juiz Gerivaldo Neiva, em análise que fez em seu blog  (100 maiores litigantes do Brasil: alguma coisa está fora da ordem), os  esforços da justiça estariam em grande parte concentrados entre  "caloteiros e gananciosos". 
     Verdade seja dita, o acesso aos tribunais superiores não é apenas protelatório. 
    Só o Superior Tribunal de Justiça, o "Tribunal da Cidadania", editou  nada menos do que quatro súmulas que favorecem diretamente aos bancos,  como apontou Neiva. Entre elas a que proíbe o juiz, nos contratos  bancários, de considerar uma cláusula abusiva contra o consumidor, se  não houver expressamente a alegação no processo. 
    A decisão, que serve de referência para a jurisprudência nacional,  inverte o privilégio criado pelo código do consumidor. Mas a Justiça  parece considerar, muitas vezes, que bancos não têm as mesmas  obrigações. 
    O STF, a seu turno, não se mostra tão garantista em outros campos. 
    Avança na precarização dos direitos trabalhistas, principalmente ao  ampliar a aceitação da terceirização. Em relação aos funcionários  públicos, destroçou com a força de uma súmula vinculante, a exigência de  mero advogado nos processos disciplinares, e com outra a possibilidade  de usar o salário mínimo como indexador de adicionais, proibindo ainda o  juiz de substitui-lo por qualquer outra referência. 
    Não há sentido mais igualitário do que o princípio básico da justiça:  dar a cada um o que é seu. Regras tradicionais de interpretação das leis  privilegiam sempre a equidade. Se tudo isso ainda fosse pouco, a  redução das desigualdades é nada menos do que um dos objetivos  principais da República. 
    Por mais que a Justiça julgue cada vez mais e se esforce para julgar  cada vez mais rápido, não se pode deixar de lado a questão fundamental  da igualdade e com ela a proteção aos direitos fundamentais. 
    É certo que a sociedade brasileira é profundamente desigual e que a  maioria das leis aprofunda esse fosso ao invés de reduzi-lo. 
    Mas a obrigação de ser o anteparo da injustiça significa também impedir o  arbítrio do poderoso, a danosa omissão do mais forte e a procrastinação  premeditada do grande devedor. 
     Temos de entender que o direito existe em função dos homens e não o contrário. 
  Não há formalismo que possa nos impedir de tutelar a dignidade humana,  diante da repressão desproporcional ou da desproteção dos valores mais  singelos. 
    Para que os fortes se sobreponham pela força, a lei da selva sempre foi suficiente. 
    Deve haver uma razão para que a humanidade a tenha abandonado. 
Marcelo Semer  é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente  da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos  Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime  Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras).  Responsável pelo Blog Sem Juízo.
 
 
Quando resolvi entrar na polícia escolhi uma profissão que presta serviço a sociedade e consequentemente tinha um ideal de justiça que o curso de Direito só ampliou. Mesmo sabendo que ideal é algo inatingível em nossa vida cotidiana, entre os impasses entre polícia, sociedade e justiça vemos que nem tudo está perdido porque existem mais pessoas que como nós, lutam por esse tão almejado ideal de justiça.
ResponderExcluirDr. Marcelo Semer é um dos poucos na magistratura que tem a mesma coragem de expor as mazelas escondidas atrás das togas dos Tribunais Superiores. Abraços a todos.
Temos aí constatação daquela velha máxima: "Para os pobres: o rigor da lei. Para os ricos: o favor da lei".
ResponderExcluirA sociedade evolui, se transforma, mas muitas coisas permanecem imutáveis...
Luciana Cristina, São Paulo - SP