quinta-feira, 3 de março de 2011

O POVO NÃO SABE VOTAR - José de Souza Martins

    “O povo não sabe votar”, já ouvi muitas vezes e tenho ouvido nestes dias.
    “Povo ignorante, político corrupto”, li num muro, em trêmula pichação, numa das últimas eleições. Essas concepções depreciativas do povo são injustas.
Esquecemos das heranças pesadas que levamos nos ombros. Os analistas da situação social e política querem pensar o Brasil como um País moderno, voltado para o futuro, negando-se historicamente todo o tempo. O que existe do passado no nosso modo de ser, no nosso modo de pensar, nas nossas insuficiências e no nosso atraso seria mero resquício de uma realidade em extinção, que não comprometem nossa ânsia coletiva d deixar o passado para trás e mergulhar de vez no futuro.

    No entanto, o passado que nos trava esta mais presente entre nós do que qualquer um de nós possa imaginar. Desde o modo de falar, passando pelo modo de viver, até o modo de pensar a vida e a política. Ainda falamos em todo o Brasil um resquício da língua nheengatu, que se poderia chamar de língua nacional brasileira ou língua do povo. Foi uma língua criada pelos missionários jesuítas, provavelmente com grande influência do gênio que era o padre José de Anchieta. Baseada na língua tupi e organizada com base na gramática portuguesa, difundiu-se por toda costa do Brasil. É ainda falada em vários lugares dopais e não faz muito houve até mesmo tentativa da Anatel d proibir o seu uso em programas de rádio destinados às comunidades nheengatu falantes no Mato grosso do Sul e no Alto Rio negro. Alegava o órgão oficial, em português, uma língua estrangeira, a proibição de transmissão de programas em língua estrangeira, como a nheengatu, na verdade a língua brasileira. Nessa última região, no município de São Gabriel da Cachoeira, o nheengatu é língua oficial e os documentos municípios devem ser publicados nela e em português.
    Nem nos damos conta de que nossa geografia é predominantemente nheengatu. Só na região mpaulistana: Jaraguá, Ipiranga, Moóca, Carapicuíba, Butantã, Itapecerica, Embú. Ou que esta na fala cotidiana: falá, contá, mexê, caí, rezá, votá, Elegê, cssá, reelegê! Quando os brasileiros foram proibidos de falar essa língua, no século 18, e obrigados a falar a língua estrangeira que era o português, língua de administração colonial, de cartório e de justilça, tiveram dificuldade para fazê-lo. Com a proibição, o português começou a ser falado com sotaque nheengatu: orelha virou or~eia, rezar virou rezá, mulher virou muié.
    Nasceu o dialeto caipira e sertanejo que, em vez de acabar, sobreviveu e divorciou o português escrito do português falado, o da consciência social e popular.
    Essa era a língua da servidão. Esta ai o “mecê” caipira e o próprio “você” urbano, filhos, ambos, do “vossa mercê” com que os ínfimos tratavam os seus senhores. Mais do que um vocabulário, nessa linguagem sobrevivente há parâmetros de consciência relativos à subalternidade. Raramente dizemos uma sentença inteira. Nossa fala cotidiana tem sujeito e verbo, raramente dizemos uma sentença inteira. Nossa fala cotidiana tem sujeito e verbo, raramente objeto e complemento. Diferente do que ocorre com a língua portuguesa em Portugal, sempre dizemos as coisas pela metade. “eu vou”, mas não dizemos para onde vamos nem quando.
    Essa é a linguagem do medo, de quem não pode dizer uma sentença completa porque não tem certeza. Ou, sobretudo, porque a linguagem incompleta é a linguagem dos subentendidos, da certeza de que o outro saberá o que estou dizendo. Linguagem da dissimulação, da vergonha e da subserviência, do faz de conta. Dizendo metade, digo o que o outro quer ouvir e, de certo modo, me permite dizer. Não me exponho à crítica, à censura nessa linguagem de duplo sentido. Sempre deixo um resto de sentença para completar conforme o andamento da conversa. Como pode um povo, cuja consciência política é expressão de uma fala mutilada, se tornar um povo político?
    Essa língua tem sentido nas relações políticas que são ao menos tempo relações de dominação pessoal. O que hoje chamamos de corrupção não o era até não muito tempo taras. O mundo colonial, que atravessou o Império e se estendeu pela república, subsistindo ainda nos nossos relacionamentos sociais e políticos, era o mundo dos potentados rurais, dos senhores de gado e gente, como diz a canção, de senhores de escravos e de agregados. Ao menos até o século 18 eram eles chamados de pais da pátria. Era o mundo do mando e da obediência servil. Mas era também o mundo em que o patrimônio privado alimentava favores e dependências, circunscrevia até mesmo a liberdade dos livres.
    Publicado em O Estado de São Paulo.
    Texto de José de Souza Martins, professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP.

2 comentários:

  1. Gostaria de enaltecer a importância deste sociólogo em um País carente de mentes e pensadores.
    Entendo que este texto vai ao encontro das expectativas, não apenas e tão somente do policiais brasileiros, mas também explica nossa subserviência calcadas em raízes históricas profundas que não conseguimos extirpar de nossa realidade atual.
    Portanto é premente a luta pela democratização das instituíções de segurança pública em nosso país.

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  2. Pessoal por gente leza como devo fala com o José de Sousa Martins.Preciso comprar um livro dele e nao estou encontrando, por isso quero falar com ele.O titulo do livro (OS CAMPONESES E A POLITICA NO BRASIL).O meu email franciscosampaios@hotmail.com.

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