Reabilitação e Readaptação dos Profissionais de Segurança Pública
Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência
Por MARIA APARECIDA GUGEL - 06/08/2011
Fonte: http://phylos.net/direito/profissionais-deguranca
Há alguns anos sustento que os editais de concurso público não podem restringir a participação de pessoas com deficiência em qualquer cargo ou função, em vista do direito de todos ao concurso publico e do comando constitucional de reserva vagas (art. 37, I e VIII, Constituição da República).
Dessa concepção constitucional decorre a convicção de que os concursos públicos para as áreas de segurança pública, exemplos da polícia civil e bombeiros, devem prever a reserva de vagas para o acesso de candidatos com deficiência. Se classificada no certame público, a pessoa com deficiência será avaliada durante o estágio probatório quanto à produtividade, responsabilidade, assiduidade, disciplina e capacidade de iniciativa (lei nº8.112/90). Em contrapartida, o administrador realizará todas as adaptações no ambiente de trabalho e para a realização das tarefas da função. Somente se a pessoa com deficiência não alcançar êxito na avaliação do estágio probatório é que não poderá ser efetivada.
Recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, na apelação cível nº 2010.012602-0 promovida pelo Ministério Público, tendo como relator o Desembargador Vivaldo Pinheiro, consolida essa possibilidade:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONCURSO PÚBLICO. RESERVA DE VAGAS PARA PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. DIREITO CONCEDIDO SOMENTE AOS CANDIDATOS À DELEGADO DA POLÍCIA CIVIL. PRETENSÃO DO PARQUET PARA EXTENSÃO AOS PRETENSOS AGENTES DE POLÍCIA E PARA QUE A ANÁLISE DA COMPATIBILIDADE DA DEFICIÊNCIA COM O CARGO SEJA AFERIDA SOMENTE DURANTE O ESTÁGIO PROBATÓRIO. OBRIGAÇÃO DO ESTADO DE DISPONIBILIZAR VAGAS PARA OS DEFICIENTES PARA TODOS OS CARGOS. CANDIDATOS QUE DEVERÃO SE SUBMETER A TODAS AS PROVAS PREVISTAS PARA O CERTAME E AO CURSO DE FORMAÇÃO COM AS ADAPTAÇÕES NECESSÁRIAS E COMPATÍVEIS COM O EXERCÍCIO DO CARGO PRETENDIDO. COMPATIBILIDADE QUE PODERÁ SER AVALIADA DURANTE O CONCURSO, NO EXAME DE ADMISSÃO E NO ESTÁGIO PROBATÓRIO. CONHECIMENTO E PARCIAL PROVIMENTO DO RECURSO.
I - A Administração, nos termos em que determina o artigo 37, incisos II e VIII, da Constituição Federal, não pode, quando da realização de um concurso público, isentar-se de reservar um percentual mínimo de cargos e empregos públicos destinados aos portadores de deficiência, contudo poderá limitar esse acesso, através de provas voltadas a selecionar pessoas qualificadas para a função disponibilizada, desde que de forma objetiva e em conformidade com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei.
II - Para a garantia da completa isonomia e conforme previsão legal contida nos artigos 39, III, e 41 no Decreto nº 3.298/99, os candidatos devem se submeter a todas as provas exigidas no certame e ao curso de formação, com as adaptações necessárias à deficiência, cabendo a uma equipe multiprofissional, composta na forma da lei, avaliar se estas são pertinentes e compatíveis com a futura função a ser exercida.
Também no âmbito das relações do trabalho há funções que exigem pratica e conhecimento de serviços de segurança, exemplos dos serviços de vigilância e transporte de valores que têm regramento próprio a exigir cursos de formação, na forma da lei nº 7.102/83. O curso de formação de vigilância, por sua vez e tratado na Portaria nº 387, de 28/8/2006, do Departamento de Polícia Federal, não tem qualquer restrição à participação de pessoas com deficiência interessadas (Gugel, 2007, p. 121). O tema está tratado pelo Conselho Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE, cuja resolução pode ser lida no parecer nº 117/2008, acessando o endereço http://portal.mj.gov.br/conade/.
Ao externar essas convicções em seminários e eventos sempre sou abordada por policiais da reserva, reformados por incapacidade permanente decorrente de acidente de trabalho, que testemunham o desejo de se reabilitarem para o retorno às atividades ou em outras funções para as quais fossem reabilitados. Porém, relatam, há o impedimento previsto nos estatutos da corporação (forças armadas, policia militar, policia civil e bombeiros), bem como a falta de vontade política dos administradores e órgãos de segurança pública em dialogar sobre o tema com escopo na reabilitação do profissional e com a perspectiva do exercício de outras funções no quadro da corporação.
Postos os principais fatos, percebe-se que o tema ”reabilitação“, agora mais do antes, na visão vanguardista da Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência está a merecer atenção de todos os interessados.
Pelos atuais termos da Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência o membro das forças armadas, o policial militar ou civil, e o bombeiro têm direito à reabilitação e, uma vez reabilitado, o direito de retornar às funções. Retorno para a mesma função ou para funções distintas, a depender da funcionalidade da pessoa, o que poderá exigir a readaptação das funções. Tudo com previsão expressa nos estatutos. É o que pretendo demonstrar nesse estudo, tendo como modelo a legislação do Distrito Federal.
O que é reabilitação e readaptação?
A reabilitação de profissionais do mundo do trabalho está tratada na lei previdenciária (lei nº 8.213/91, artigos 89 a 92). Destina-se aos beneficiários incapacitados parcial ou totalmente para o trabalho e, às pessoas com deficiências. É um serviço que deve proporcionar condições de (re) educação e de (re) adaptação profissional de forma a poder (re) ingressar no mercado de trabalho e no contexto em que vive.
Lembre-se que o trabalhador reabilitado pela Previdência Social integra, juntamente com a pessoa com deficiência, a reserva de cargos nas empresas com cem ou mais empregados (lei nº 8.213/89, art. 93).
A readaptação no âmbito da administração pública é a investidura do servidor em cargo de atribuições e responsabilidades compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental verificada em inspeção médica. A readaptação será efetivada em cargo de atribuições afins, respeitada a habilitação exigida, nível de escolaridade e equivalência de vencimentos e, na hipótese de inexistência de cargo vago, o servidor exercerá suas atribuições como excedente, até a ocorrência de vaga, é o que diz a lei que rege o pessoal da administração pública (lei nº 8.112/90, art. 24, § 2º).
Outra previsão normativa para o servidor público é a reversão, ou o retorno à atividade daquele que foi aposentado, inclusive por invalidez.
Os procedimentos de reabilitação para trabalhadores em geral e de readaptação para servidores públicos se assemelham e consistem basicamente em avaliar e definir a capacidade de trabalho residual do trabalhador/servidor; avaliar seu potencial de trabalho; orientar e acompanhar a programação profissional que pode ser desenvolvida mediante cursos e/ou treinamentos, com o objetivo de reingresso do trabalhador (chamado de beneficiário) ou servidor (chamado de readaptando) no mundo do trabalho/funções.
O beneficiário e/ou readaptando no período destinado à reabilitação são acompanhados por equipe multiprofissional composta de profissionais de medicina, serviço social, psicologia, sociologia, fisioterapia, terapia ocupacional e outras. Sendo necessário para cada caso, serão fornecidas as ajudas técnicas (orteses, proteses), assim como transporte urbano e alimentação.
O sistema de reabilitação brasileiro, ressalvados alguns estados e órgãos da administração pública, funciona precariamente ao ponto de quase impedir o direito da pessoa à reabilitação/readaptação.
Consideradas as doenças e lesões adquiridas no trabalho, o motivo para reabilitar uma pessoa (seja ela um trabalhador, empregado ou servidor público) é garantir-lhe a autonomia e a independência, reduzindo ao máximo as barreiras para a sua participação na sociedade, visando sua (re) inclusão no trabalho.
As leis e a jurisprudência atuais sobre readaptação
As leis e a jurisprudência atuais não são favoráveis quando se trata de readaptação para policiais militares, civis e bombeiros que desejam retornar às funções após o evento causador da incapacidade, ou que os fez adquirir uma deficiência.
O estatuto dos policiais militares e bombeiros do Distrito Federal, praticamente repetido em todos os estados brasileiros, ao prever a reforma do policial ou do bombeiro, decorrente de uma situação de inatividade, diz que ocorrerá quando ele for julgado incapaz definitivamente. Esse julgamento de incapacidade definitiva impossibilita-o total e permanentemente para qualquer trabalho.
O policial da ativa julgado incapaz definitivamente (por ferimento recebido em operações, enfermidade contraída, acidente de serviço, doença ou moléstia adquirida com ou sem relação de causa e efeito com o serviço, tuberculose ativa, alienação mental, neoplasia maligna, cegueira, lepra, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, mal de Parkinson, pênfigo, espondiloartrose, anquilosante, nefropatia grave, e outras moléstias que a lei indicar com base nas conclusões da medicina especializada) será reformado com qualquer tempo de serviço. Somente se for julgado apto em inspeção de saúde por Junta Superior em grau de recurso ou revisão, poderá retornar ao serviço ativo ou ser transferido para a reserva remunerada, conforme dispuser a legislação específica. A remuneração será proporcional ao tempo de serviço ou integral do posto dependendo dos motivos causadores da incapacidade.
Não se encontra nesse estatuto nenhuma previsão sobre reabilitação ou até mesmo readaptação das funções. A única previsão de reabilitação diz respeito a casos de disciplina. Nenhuma linha ou previsão também para o caso de o profissional ter adquirido uma deficiência.
A jurisprudência do Tribunal Superior Justiça por questões técnicas intrínsecas ao recurso especial também não chega a discutir eventuais pedidos de retorno à função. Além disso, entende desnecessária a discussão em torno da incapacidade para todo e qualquer trabalho.
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AGRAVO REGIMENTAL. ART. 535 DO CPC. VIOLAÇÃO. INEXISTÊNCIA. MILITAR. ACIDENTE. INCAPACIDADE DEFINITIVA. SERVIÇO DAS FORÇAS ARMADAS. REFORMA NO MESMO GRAU HIERÁRQUICO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. DÍVIDA DE CARÁTER ALIMENTAR. FAZENDA PÚBLICA. CORREÇÃO MONETÁRIA. INCIDÊNCIA.
1. Se a Corte de origem, com base no conjunto fático-probatório dos autos, entendeu que o acidente sofrido pelo agravado em serviço o incapacitou definitivamente para o serviço ativo das Forças Armadas, rever tal entendimento implicaria reexame de matéria fática, o que é inviável em sede de recurso especial. Incidência da Súmula 7/STJ. 2. "Nos termos da Lei 6.880/80, reconhecida a incapacidade do recorrido para a vida militar, em razão de acidente de serviço, sua reforma se dará no mesmo grau hierárquico que ocupava enquanto na ativa, independentemente de seu tempo de serviço, sendo despiciendo, em tal situação, que a incapacidade seja para todo e qualquer trabalho". (REsp 692.246/RJ, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJ 28/5/2007). 3. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é firme no sentido de que a correção monetária, nas dívidas dotadas de caráter alimentar, deve incidir desde a data em que deveria ter sido efetuado o pagamento de cada parcela. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no Ag 1175941/RS 2009/0064316-9, Rel. Min. OG Fernandes, 6ª. Turma, julgado 21/09/2010, DJ 11/10/2010)
O policial ou bombeiro, no entanto, contrariamente a ser reformado, e uma vez tendo passado pela reabilitação, poderia voltar a exercer suas atividades em funções adaptadas ou, dependendo da sua atual condição de funcionalidade (o grau de comprometimento), exercer outras atividades da própria corporação, a saber: estabelecimentos de ensino da corporação nas funções típicas de professor, instrutor ou monitor; em funções correlatas nos departamentos da administração, de saúde, de finanças, de informática, de ciência e tecnologia ou qualquer outra atividade inerente, ou serviços urgentes e de emergência.
O desejável é que se aplique a máxima do regime geral da previdência ao tratar da habilitação e reabilitação profissional: reabilitar-se para exercer as mesmas atividades (eventualmente adaptadas à sua atual condição) e seguir na própria da carreira ou, exercer outras atividades para a quais se capacitar.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - CDPD
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU juntamente com o Protocolo Facultativo (assinada em Nova York em 30 de março de 2007; aprovada pelo Congresso Nacional em 10 de julho de 2008, Decreto Legislativo nº 186; promulgada em 25 de agosto de 2009, Decreto nº 6.949) consolida mudanças de paradigmas nas concepções, atitudes e abordagens em relação às pessoas com deficiência. Sendo um tratado internacional de direitos humanos equivale à Constituição da República, e os direitos nele concebidos revogam as normas infraconstitucionais incompatíveis.
A CDPD ao tratar da habilitação e reabilitação, no artigo 26, indica que devem ser tomadas providências para possibilitar que as pessoas com deficiência conquistem e conservem o máximo de autonomia e plena capacidade física, mental, social e profissional, bem como plena inclusão e participação em todos os aspectos da vida.
Para isso, os serviços e programas completos de habilitação e reabilitação na área do emprego devem ser organizados e implementados para atingir ao objetivo de manter a pessoa que adquiriu uma deficiência o direito de continuar no trabalho (art. 27, item 1), sendo absolutamente necessária a promoção da reabilitação profissional, a manutenção do emprego e dos programas de retorno ao trabalho para pessoas com deficiência (art. 27, item 1, k).
Em diferentes passagens do texto da CDPD há afirmações de “direito de continuar no trabalho” e de “direito de retorno ao trabalho”, indicando que o direito ao trabalho é reconhecido como direito fundamental e necessário para a pessoa com deficiência. O trabalho é o esteio para a sua independência econômica e financeira. Esse postulado se coaduna com o propósito da CDPD de promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
Tenha-se presente que quando a CDPD trata dos temas trabalho, emprego, habilitação e reabilitação, concebe-os como direitos e os define tanto para o setor privado, quanto para o setor público. Daí decorre a urgente necessidade de alteração dos códigos e estatutos das corporações de segurança pública para tratar de forma definitiva sobre o direito à reabilitação e manutenção do reabilitado nos serviços ativos.
Novas diretrizes na promoção de direitos
Recentemente foi publicada portaria conjunta entre o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos tratando de diretrizes para a promoção de direitos humanos dos profissionais de segurança pública.
O traçado da portaria propõe um novo olhar para a questão e, felizmente, reconhece pontos específicos reservados à reabilitação e reintegração que precisam ser apropriados pelos próprios profissionais e, também, pela sociedade civil organizada, conselhos de direitos e instituições voltadas para a promoção e implementação de direitos.
Os trechos principais e que interessam ao presente estudo dizem o seguinte:
27) Promover a reabilitação dos profissionais de segurança pública que adquiram lesões, traumas, deficiências ou doenças ocupacionais em decorrência do exercício de suas atividades.
28) Consolidar, como valor institucional, a importância da readaptação e da reintegração dos profissionais de segurança pública ao trabalho em casos de lesões, traumas, deficiências ou doenças ocupacionais adquiridos em decorrência do exercício de suas atividades.
29) Viabilizar mecanismos de readaptação dos profissionais de segurança pública e deslocamento para novas funções ou postos de trabalho como alternativa ao afastamento definitivo e à inatividade em decorrência de acidente de trabalho, ferimentos ou seqüelas.
(PORTARIA INTERMINISTERIAL SEDH/MJ nº 2, de 15 de dezembro de 2010, dou 16.12.2010, Estabelece as Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública. REABILITAÇÃO E REINTEGRAÇÃO).
Conclusões
É urgente a revisão do modelo atual que determina a reforma do profissional de segurança por ter sido considerado incapaz em decorrência de doença ou acidente do trabalho.
É necessária a previsão específica do direito de profissionais de segurança pública que tenham adquirido deficiência em se reabilitar e, ao mesmo tempo, criar medidas e desenvolver mecanismos de reabilitação desses profissionais para as atividades das mesmas funções ou outras atividades de novas funções.
A sociedade civil organizada, os conselhos de direitos e instituições voltadas para a promoção e implementação de direitos devem participar da construção desse novo paradigma com base na CDPD.
MARIA AP. GUGEL é Subprocuradora-Geral do Ministério Público do Trabalho
O texto é muito pontual, pois na Polícia Militar o profissional que se acidentar e passar a esta condição é compulsoriamente reformado.
ResponderExcluirAlgumas associações, inclusive algumas voltadas para aqueles com deficiência física adquiridas na atividade policial possuem iniciativas no sentido do aproveitamento desse profissional em áreas de administração, liberando para o serviço de rua queles que hoje se encontram em trabalhos burocráticos, uma vez que o efetivo a cada dia diminui.
Nós profissionais da área que nos aperfeiçoamos precisamos refletir sobre políticas públicas inclusivas tanto quanto segurança pública.!!
abraços.