Fazendo um paralelo com a realidade da segurança pública, quantos profissionais não precisam de um atendimento psicológico e psiquiátrico adequado para conseguirem desempenhar sua atividade sem colocar em risco a sua vida e de outras pessoas? Aliás, um acompanhamento preventivo, regular, rotineiro, poderia evitar circunstâncias dolorosas e violentas no seio das instituições e na sociedade.
A saúde mental também é um direito. Direito de todos.
A mais recente notícia do Trocadilo
por Marcio Miotto
fonte: http://www.amalgama.blog.br
Em 2006, Marcos Prado lançou o documentário Estamira. Aclamado tanto pela crítica quanto por profissionais de saúde mental, o filme trata da história de uma mulher idosa que sofre de distúrbios mentais e trabalha em um lixão do Rio de Janeiro.
Além de representar uma história que não é apenas representação — o filme desenvolve curiosas relações com o que retrata e o que tem a dizer –, Marcos Prado também problematiza no jogo das imagens a própria atitude do espectador. Estamira não é apenas mais uma história para se ver descompromissadamente no cinema e depois retornar ao lar, mera peça de entretenimento. Diante da figura real de Estamira, o filme envolve o próprio espectador na trama, ele mesmo é de algum modo cúmplice. A considerar a narrativa, o espectador e seu modo de vida são a contraparte da existência mesma e do discurso da personagem principal — “Vocês precisam da Estamira”, diz ela. A existência de modos de vida como os “nossos” fazem parte (sustentam, requerem e são a contraparte) da existência de modos de vida como o de Estamira.
O espectador poderia ser tentado a fazer uma interpretação psicológica da personagem. Veria ela como uma figura com características e sofrimentos: uma biografia recheada de intrigas pessoais, incompreensão, determinantes individuais, mecanismos patológicos, loucura… E assim novamente teríamos a postura do espectador que não se compromete com o filme. Mas seria tudo de fato apenas assim? Os delírios de Estamira, mais de uma vez mostrados no filme, se resumiriam apenas nos ingredientes de um drama individual, teatral e psicológico? Não haveria algo mais?
Levando em conta por exemplo considerações como as do filósofo francês Gilles Deleuze, um delírio não se resume apenas em um drama teatral ou psicológico. Encerrar certas vozes no elemento puro e simples do descrédito é, como na frase de Dostoiévski, uma operação de isolarmos o vizinho para nos convencermos de nosso próprio bom senso. Isolando Estamira na narrativa de um personagem simplesmente doente, voltamos para casa como confortáveis consumidores de cinema que presenciaram apenas mais uma montagem. Mas, será mesmo? Quando se concede certa voz ao delírio, ou quando se consideram em certo sentido efetivas as palavras de alguém cuja palavra é de saída desvalorizada por todos, os resultados podem ser muito importantes, como mostraria o célebre comentário de Deleuze em seu Abecedário:
um delírio, qualquer que seja ele, se olhar de perto, se ouvir o delírio que for, não tem nada a ver com o que a psicanálise reteve dele, ou seja, não se delira sobre seu pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos (…) O delírio é geográfico-político. E a psicanálise reduz isso a determinações familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois de tantos anos, depois de O Anti-Édipo, digo: a psicanálise nunca entendeu nada do fenômeno do delírio. Delira-se o mundo, e não sua pequena família. Por isso que… Tudo isso se mistura. Eu dizia: a literatura não é um caso privado de alguém, é a mesma coisa, o delírio não é sobre o pai e a mãe. (O Abecedário de Gilles Deleuze, grifo meu)Em outras palavras, caso não consideremos o delírio de Estamira pura e simplesmente como mera peça de história individual, ele poderia de algum modo oferecer mais do que a simples desordem de um doente. Ou melhor, talvez encerrar o discurso na doença signifique descaracterizar o momento do discurso em diversos sentidos, por exemplo no que ele poderia carregar de elemento estético, ético e político. Sentido estético: caso todos os fatores da linguagem se encerrem em determinações psicológicas (“o” doente, “esse” personagem), não há sentido algum envolvido no filme senão o de que a própria arte também se reduz a determinantes psicológicos (e assim se pode assistir Estamira como se vai ao cinema ver um drama blockbuster). Sentido ético: caso a linguagem exaltada seja desprovida de valor e sentido (ou tenha seu sentido inteiro determinado pela doença), igualmente pouco do espectador se compromete no filme. Sentido político: uma linguagem ou voz destituídas de seu caráter ativo não dizem respeito à manutenção, crítica ou possível mudança de modos de vida.
Dentre outros fatores, provavelmente MP tenta retituir os sentidos acima em seu documentário. O debate sobre se há sentido ou não no discurso de Estamira está, de início, fadado a essa decisão inicial sobre como encarar o delírio. Caso se o encare apenas como um drama tomado em esfera individual ou psicológica, podemos no máximo nos emocionar com tal vida. Mas considerando a linguagem do filme sob outras instâncias, os três fatores acima saltam aos olhos. Um exemplo é quando Estamira recusa Deus e o que ela chama de “trocadilo”. O que é Deus, segundo Estamira? É aquele que, na esfera da existência cotidiana e efetiva, permite toda espécie de “trocadilhos”: permite o mau parecer bom, o feio parecer belo, o homem explorar o próprio homem e assim por diante. Por isso, segundo ela não existe “homem inocente” e irresponsável diante dos acontecimentos, mas o suposto ignorante é secretamente um “esperto ao contrário”. Daí Estamira ser enfática ao afirmar: “sou ruim, mas não perversa”. Ser “perversa” implica utilizar “trocadilos”, modos de vida misturados, mesclados, “copiados” (na escola aprende-se apenas a “copiar”), nos quais o liame entre um ato moral e a imoralidade é constantemente afrouxado, tênue e enfim desfeito. Os homens não “compreendem” a “Deus”, porque vivem modos de vida em que o limite da moralidade facilmente se reverte em seu oposto, culminando a própria “existência” de “Deus” como resultado desses “trocadilos”. “Que Deus é esse? Que Deus é esse, que só fala de guerra e não sei o quê? Não é ele que é o próprio trocadilo?”.
Para além do ensinamento ético, a linguagem de Marcos Prado conduz também a determinantes políticos: a voz de Estamira é a voz do lixão do Gramacho, com seus integrantes e seu cotidiano de excluídos. “Sua” existência é “necessária” para “nós” ou para “nossa existência”. O descaso do Gramacho é parte constituinte do que faz o Rio de Janeiro (ou o Brasil) ser o que é. É lá que Estamira fixou território depois de alguns anos entre a loucura e a desolação; esse lugar mostra o “descuido” do homem, que com seus “trocadilhos” descarta sistematicamente as coisas enquanto paradoxalmente não as possui (caso as possuísse, teria mais cuidado e não haveriam tantos lixões). Enfim, é do lixão que o “cuidado” de Estamira (“ruim” mas não “perversa”, pois cuidando do fruto do descuidado alheio) pode extrair ingredientes de uma comida “melhor que a do restaurante”.
A considerar o filme de Marcos Prado, não colocamos em jogo simplesmente o (não) discurso de um doente mental, mas palavras que apontam o dedo a nossos modos de vida, cultivados em meio a tanto descompromisso e descaso. Modos de vida que novamente se redobram sobre o próprio filme: Estamira faleceu ontem (28/7), após dois dias esperando atendimento em um hospital público do Rio com uma grave infecção.
Marcio Miotto - Pesquisador na área de Filosofia e Psicologia. Contribui também para os coletivos O Estrangeiro e Trezentos. -
Hoje vivemos com medo de tudo e de todos por conta de termos no passado, e hoje também, pensado que a miséria não nos afetaria. A miséria de que falo é de entendimento, sentibilidade e falta de solidariedade. Nos fechamos em nossos lares alheios ao que acontece aos nossos semelhantes, mas já estamos pagando por essa atitude,pois está voltando para cada um de nós.
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