O presente artigo que ora reproduzimos, frente à magnitude do Des. Rizzatto Nunes, é extenso mas vale a leitura e espelha a atualidade do tema.
Quando se discute um novo modelo para a segurança pública no Brasil, muito se critica quanto à formação de seus agentes, no que concordamos e ainda salientamos que nas academias de polícia, sofrem-se dos mesmos "ites" a que se refere o nobre jurista.
Prepotência, arrogância, como na magistratura, se repete o erro de um jovem iniciar sua carreira com responsabilidades além de seus conhecimentos (decorados em cursos preparatórios), e a realidade de julgar causas de todos os ramos do direito, penal, civil, tributário, empresarial, família (muitas vezes julgando dissoluções conjugais sendo solteiro), etc.
Somente quando chega numa entrância mais importante, numa capital por ex., passa a julgar causas específicas. Daí, mais tarde como desembargador, com um saber jurídico notável fica restrito a sua câmara julgando matérias específicas, ou seja, quando está mais preparado não pode atuar como deveria, será que algo está errado? O signatário deste artigo acredita sim e como nós, com certeza entendemos o mesmo. Se na magistratura, no Sistema Judicial, encontramos tais problemas, vamos apenas discutir o papel dos agentes da segurança pública? Acho que não.
Quando se discute um novo modelo para a segurança pública no Brasil, muito se critica quanto à formação de seus agentes, no que concordamos e ainda salientamos que nas academias de polícia, sofrem-se dos mesmos "ites" a que se refere o nobre jurista.
Prepotência, arrogância, como na magistratura, se repete o erro de um jovem iniciar sua carreira com responsabilidades além de seus conhecimentos (decorados em cursos preparatórios), e a realidade de julgar causas de todos os ramos do direito, penal, civil, tributário, empresarial, família (muitas vezes julgando dissoluções conjugais sendo solteiro), etc.
Somente quando chega numa entrância mais importante, numa capital por ex., passa a julgar causas específicas. Daí, mais tarde como desembargador, com um saber jurídico notável fica restrito a sua câmara julgando matérias específicas, ou seja, quando está mais preparado não pode atuar como deveria, será que algo está errado? O signatário deste artigo acredita sim e como nós, com certeza entendemos o mesmo. Se na magistratura, no Sistema Judicial, encontramos tais problemas, vamos apenas discutir o papel dos agentes da segurança pública? Acho que não.
A escola de direito tem problemas, e dentre eles um dos mais relevantes é de ordem pedagógica: o ensino oferecido tem peculiaridades tais que, muitas vezes, faz com que se duvide, inclusive, se se está ensinando algo. Pois bem. Neste artigo, apresentaremos nossos apontamentos para a elaboração de um estudo crítico da pedagogia nos cursos jurídicos. São notas ainda preliminares, elaboradas a partir da experiência de mais de vinte e quatro anos como professor em diversas escolas e colhidas de pesquisa que vimos fazendo junto a alunos de graduação de várias escolas, assim como com mestrandos, doutorandos e professores. São antes reflexões que conclusões, análises subjetivas de dados que já permitam a construção de um novo modelo capaz de, de alguma maneira, modificar, ainda que timidamente, o quadro existente. Trazemo-las a público exatamente para permitir a discussão com um maior número de estudiosos e, quiçá, obter saídas para a crise do ensino jurídico.
1. O problema da educação bancácia
O professor Paulo Freire, numa de suas obras obrigatórias a qualquer professor, “A pedagogia do oprimido”, faz um diagnóstico preciso do sistema educacional. No que nos interessa para a escola de direito e descrição daquilo que o mestre intitula “educação bancária”, cuja crítica é corretíssima, encaixa-se como uma luva o sistema de ensino da escola de direito. A educação bancária é modo de opressão ou, antes, pressupõe a ausência de liberdade e a imposição unilateral do educador. Nela os educandos são meros depositários e o educador, aquele que deposita, transfere, transmite informações, conhecimentos, valores. Nesse modo de transmissão, as pessoas são vistas como adaptáveis, capazes de se ajustarem. Esses depósitos feitos aos educandos, quanto mais preenchem seus “arquivos” mentais, mais limitam sua capacidade crítica de inserção no mundo como pessoas dotadas de uma consciência que lhes permitisse transformá-lo (o mundo).
Esse ensino feito por narrativas conduz o educando à memorização mecânica dos conteúdos: os alunos são tidos como vasilhas, recipientes a ser “enchidos” pelo educador. Quanto mais o recipiente for enchido, melhor será o educador; quanto mais dócil for o educando na permissão do enchimento, melhor será o educando. Não há entre os dois propriamente comunicação - dialógica como seria de esperar -, mas apenas comunicações, nas quais o educador comunica, isto é, informa, transfere, e o educando recebe, memoriza e repete.
Nesse modelo de ensino o “saber” é uma doação daqueles que se julgam sábios aos educandos, os quais eles julgam nada saber. Paulo Freire detalha as características do modelo, que, repita-se, são típicas da escola de direito:
“ a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que escutam docilmente; e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição; g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador; h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele; j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos” 1
Não podemos, na extensão deste artigo, abordar um por um os axiomas acima expostos, mas os transcrevemos por sua urgência e atualidade e para lembrarmos que, se quisermos, um dia, ter efetivamente uma pedagogia adequada na escola de direito, ela passa por uma reflexão profunda de sua pedagogia e, claro, no estudo de autores como Paulo Freire - lido e estudado, aliás, nas melhores faculdades do mundo. Ficaremos, todavia, com algumas dessas verdades constatáveis empiricamente para buscar demonstrar seu modo nas escolas jurídicas.
2. O pacote fechado ou o supermercado jurídico
1.1. Atraso reiterado e reinventado
O Brasil é “(...) um país de legisladores; mas de legisladores feitos a murro e sopapo e que também só sabem fazer a lei a murro e sopapo” (...) “também as leis se fabricam aqui com a mesma facilidade com que se fabrica manteiga ou sabão. Quase todas copiadas do estrangeiro - da França, da Inglaterra, da Itália e principalmente da América do Norte” (...) “por isto que as leis em nosso país se fazem e desfazem com tanta facilidade. Tudo se reforma, tudo se modifica a todo momento e cada novo governo que vem quer ter, em todos os ramos da administração, um sistema todo novo de leis. De modo que não há nenhuma tradição regular, nenhuma norma segura, nenhum princípio certo em matéria de admnistração e de governo”.
O leitor pode ver quão atual é o texto acima transcrito. Ele é de autoria de Raimundo Farias Brito e foi escrito em 19162! Infelizmente, do mesmo modo que a produção legislativa no Brasil não se alterou - apesar de alguns avanços -, a escola de direito, talvez até acompanhando aquela forma de ser, mantém-se inalterada há dezenas de anos. E, pior, as mudanças havidas nos últimos vinte anos, em vez de propiciar um avanço na pesquisa e no aprendizado, mostrou-se redutora da própria capacidade da escola de se atualizar. Isto é, ao invés de avançar, regredimos.
paupérrimo |
Apenas para ficar com um exemplo: seria de todo salutar que os concursos para as carreiras jurídicas (magistratura, ministério público, advocacia etc.) fossem cada vez mais se aproximando de cursos jurídicos que tivessem currículos modernos e cientificamente estruturados, de tal modo que ambos, profissionais e bacharéis, tivessem ampla formação humanística e capacidade crítica, pensamento livre, lógico e articulado, que pudessem dar conta das exigências de um mundo altamente complexo. Infelizmente, deu-se o oposto: nunca os cursos jurídicos estiveram tão parecidos com os conhecidos cursinhos de ingresso nas carreiras jurídicas. Escolas há em que a grade curricular é exatamente a mesma dos cursinhos, isso quando as disciplinas não são dadas pelos mesmos professores. Que cursinhos existam, vá lá, é uma exigência criada pelos concursos públicos, normalmente incapazes de selecionar os melhores profissionais. O problema está em que as escolas de direito acabaram seguindo os cursinhos, numa linha regressiva que só fez piorar o ensino já 1.2. O pacote
O modelo estabelecido nas faculdades ou cursos de direito é arbitrário e sem nenhum sentido científico nem pedagógico. Não se faz nem ciência nem se ensina a conhecer. Ele foi estabelecido há décadas e nunca modificado, do mesmo modo que a produção legislativa, conforme acima lembramos. Há, desde o início, uma crença: a de que efetivamente o fenômeno jurídico (simplistamente intitulado de “direito”) pode ser oferecido como um pacote pronto e acabado. Pior: o pacote é desenhado de maneira equivocada, com base no direito positivo posto pelo poder (democrático ou não, tanto faz).
Funciona como uma verdadeira prateleira de supermercado com produtos à mostra. É bem fácil imaginar a oferta nesse estabelecimento. O aluno, ao ingressar na escola, depara-se com uma prateleira de cinco andares, previamente montada: no primeiro andar estão dispostos alguns produtos: Direito Civil, IED, TGD etc., no segundo: Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Penal, Direito Constitucional etc. Nos terceiros, quarto e quinto andares as demais disciplinas, cada andar correspondendo a um ano de estudos. Alguns desses produtos são rotulados por números: Direito Civil I, Direito Civil I, Direito Civil, I, IV, V, Direito Processual Civil I, I, I, Direito Penal I, I, e assim por diante.
Os produtos organizados nas prateleiras variam um pouco de escola para escola, mas no contexto geral da estante, praticamente são os mesmos produtos os oferecidos. Há casos, inclusive, da oferta de produtos com data de validade vencida (quando, por exemplo, se diz que lei complementar tem hierarquia superior à lei ordinária), produtos deteriorados (quando, por exemplo, se explica que a medida provisória só pode ser editada segundo os ditames de relevância e urgência), produtos estragados em função da mistura que se operou na prateleira (o que ocorre quando a escola, por exemplo, resolve oferecer o produto direito do consumidor “dentro” do produto direito civil ou direito comercial). Enfim, a escola não passa de um grande supermercado cujos produtos tem rótulos bem conhecidos de todos. Na maior parte, os produtos são rótulos para diplomas legais; estudam-se leis como se fossem direito: direito civil = Código Civil; processo civil = Código de Processo Civil; direito penal= Código Penal; direito do consumidor = Código de Defesa do Consumidor etc.
Veja-se aqui já um drama: se fosse verdade que direito se confunde com norma de direito positivo (e no mais das vezes, apenas e tão-somente, leis), então, com a entrada em vigor do novo Código Civil, em janeiro de 2003, todos os operadores de direito vivos no País teriam de voltar para a escola, pois nenhum deles estudou esse texto (ou produto, o que é o mesmo).
Além disso, esse grande pacote (não gostaríamos de usar a expressão “embrulho”...) é oferecido num modelo metodológico formal, fechado, definitivo, que não permite questionamentos, soluções para seus paradoxos ou contradições, e que se apresenta mais de forma ficcional que real. É o que veremos na sequência.
2. A ficção
2.1. O objeto-modelo ficcional
A produção do conhecimento na faculdade de direito é bastante duvidosa, mas piora se pensarmos no conteúdo do que se transmite. A escola de direito é, em larga medida, ficção, no sentido de que o objeto posto ao exame do aluno nem sequer existe. Expliquemos.
Nas salas de aula é usual que o professor se utilize de objetos-modelo para exposição do conteúdo de suas disciplinas. Esses objetos-modelo são uma espécie de tipo ideal3 que funcionam como intermediários entre o professor e sua exposição e os alunos que ele visa ensinar. É um tipo de mapa que o professor pendura em algum lugar ou desenha na lousa, e mediante o qual faz demonstrações e raciocínios. Esses objetos são, por vezes, representantes de sistemas específicos da escola. Vamos adotar aqui, para nossa explicação, uma idéia de sistema.
O sistema não é um dado real, concreto, encontrado na realidade empírica; é uma construção científica que tem como função explicar a realidade a que ele se refere4 .
Além de ser um objeto construído, o sistema é um objeto-modelo que funciona como intermediário entre o intérprete e o objeto científico que pertence à sua área de investigação. É uma espécie de tipo ideal, para usar uma expressão citada e cunhada por Max Weber5 .
O tipo ideal é construído a partir da concepção de sentido, sendo “sentido” aquilo que faz sentido, como se, de repente, todas as conexões causais fossem uma totalidade. O sentido não surge como significação de acontecimentos particulares, mas como um conjunto percebido em bloco; unidades que não se articulam são captadas em conjunto. O tipo ideal é um construído racional que seleciona as conexões causais, removendo o que há de alheio. É uma espécie de modelo; o que não se encaixa não serve e é deixado de lado. Construído o modelo, capta-se o sentido.
O sistema, como construído, tipo-ideal, objeto-modelo, é uma espécie de mapa, que reduz a complexidade do mundo real, à qual se refere, mas é o objeto por meio do qual se pode compreender a realidade.
lá seja colocado, nem as curvas tais quais são etc |
Pois bem. Para demonstrar nosso argumento vamos comparar, por exemplo, aulas numa escola de geografia, numa de medicina e na de direito. Vamos supor que numa aula na escola de geografia o professor pretenda expor o funcionamento do sistema fluvial dos rios brasileiros. Ele leva, então, para a sala de aula seu objeto-modelo: um mapa do Brasil com os principais rios e afluentes. Os elementos desse sistema fluvial são certamente os rios e afluentes que se relacionam numa estrutura natural em que os rios vão da nascente, descem da montanha em direção ao mar. As exceções são, inclusive, facilmente demonstradas por intermédio do mapa dentro da estrutura: por exemplo, o fenômeno da pororoca do rio Amazonas, no qual o mar vai em direção ao rio, merece uma explicação adicional. O aluno de geografia sabe que o mapa (o objeto-modelo) não corresponde à realidade. Na verdade, do próprio mapa consta uma escala (1:10.0, por exemplo) que permite conhecer a relação entre aquele mero desenho, abstrato, e a realidade dos rios, vale dizer, o aluno, examinando o mapa, sabe (tem plena consciência) que aqueles rios e afluentes ali apresentados não se confundem de modo algum com a própria realidade geográfica existente. O aluno sabe muito bem que se for visitar o rio Amazonas encontrará curvas que não aparecem no mapa, descobrirá afluentes que não foram citados etc.; isso porque, como o mapa é redutor ideal da realidade, a escala da redução não permite que tudo
Pensemos agora numa aula num curso de medicina. O professor leva para a sala de aula seu mapa (seu objeto-modelo): um desenho do corpo humano que permite estudar o sistema circulatório. Os elementos do sistema circulatório estão apresentados: as veias, as artérias, o coração. O professor mostra o sistema e diz como se dá seu funcionamento. O tamanho do mapa, no caso, não é o mais importante; o desenho talvez possa ser quase o de um corpo humano real. De todo modo, o aluno sabe que um corpo humano real tem curvas, desvios, certas artérias que não aparecem lá representadas. Por outro lado, ele também sabe que a estrutura do sistema com suas leis naturais tem de ser respeitada, sob pena de o sistema parar de funcionar, ou, em outros termos, violando tais leis o sistema pára, a pessoa morre. Por exemplo, se for injetado ar nas veias de um indivíduo o sistema pára de funcionar. É regra que não pode ser desrespeitada.
Vejamos agora como se dá o mesmo exercício na faculdade de direito. Coloquemos desde já: quer o professor de direito (das disciplinas ligadas ao direito positivo, claro) o diga expressamente quer não o faça, ele sempre pressupõe a existência do sistema jurídico6 . Sua influência é tão profunda e constante que, muitas vezes, não aparece explicitamente no trabalho do operador do direito - qualquer que seja o trabalho e o operador -, mas está, pelo menos, sempre subentendido. Os elementos desse sistema jurídico, como se sabe, são as normas jurídicas escritas ou não escritas (e para aqueles que estão mais atualizados com a teoria do direito, também os princípios expressos ou implícitos). Tais normas se inter-relacionam numa estrutura:
a) hierárquica - algumas normas são mais importantes que outras; as de hierarquia inferior devem respeitar as de hierarquia superior sob pena de invalidade - inconstitucionalidade ou ilegalidade. A hierarquia vai permitir que norma jurídica fundamental, isto é, a Consitutição Federal, determine a validade de todas as demais normas jurídicas de hierarquia inferior7; b) coesa - a coesão demonstra a união íntima dos elementos (normas jurídicas) com o todo (o sistema jurídico), apontando, por conexão, para ampla harmonia e importando em coerência (antinomias e contradições são eliminadas pelas regras de interpretação e integração); c) fechada - a unidade dá um fechamento no sistema jurídico como um todo que não pode ser dividido; qualquer elemento interno (norma jurídica) é sempre conhecido por referência ao todo unitário (o sistema jurídico). As normas somente passam a fazer parte do sistema pela via prevista no próprio sistema: processo legislativo próprio e, no caso brasileiro, costume jurídico - norma não escrita - permitido pela lei ou preenchedor de lacuna8 .
Ora, vejamos que enorme problema tem o estudante de direito:
a) ele pensa que o sistema jurídico, que não passa de uma construção doutrinária, é a própria realidade. Deixemos bem claro, como a luz do sol: o sistema jurídico não existe. Tal qual o número, ele é abstração posta num sistema inventado que não pode ser encontrado em nenhum lugar, cidade, país. Vê-se, por essa via, a vantagem que levam os estudantes de geografia e de medicina, que compreendem a diferença entre realidade e objeto-modelo (mapa); b) ao estudante de direito (especialmente o estudante brasileiro) não se explica por que, apesar de se colocar ar na veia de uma pessoa, seu coração continua funcionando, isto é, não se explica por que algumas normas são postas dentro do sistema jurídico, violando claramente alguma de suas regras estruturais, por exemplo a hierarquia, e ainda assim o sistema continue funcionando, tal como a própria norma: no Brasil já se assistiu - e ainda se assiste - a normas inconstitucionais levar cidadãos para a cadeia, perder seus bens etc.
2.2. O ensino ficcional
Aliado a isso, o mais comum no modelo de “ensino” nas escolas de direito e o que é aplicado na maior parte das disciplinas que estudam direito positivo - erroneamente intituladas de dogmáticas, como se o resto não fosse: todo o pacote é dogmático - é a mera exposição de textos de doutrina que cuidam de “ler” as normas escritas ou da “leitura” das próprias normas escritas dentro de um contexto regular de aferição das mesmas. Não são estudados - com raríssimas exceções - os fenômenos jurídicos e sociais ocorrentes na realidade. Esta é captada no discurso no seu esvaziamento, vale dizer, é no discurso trazido à sala de aula que a existência real aparecesse, o que a coloca num alto grau de abstração obviamente incapaz de ser percebida como realidade concreta.
Naturalmente nesse exercício diuturno na relação dos professores com os alunos o que se perde é o mundo tal qual é. Este não conta, ou melhor, só interessa na medida em que possa fazer parte do discurso abstrato imposto unilateralmente pelo professor. O que se perde é, portanto, a possível consistência de uma ciência do direito que jamais foi construída. Para ficar apenas com um simples exemplo, em 13 de julho de 1990 foi promulgada a Lei n. 8.069, o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (mais uma produção de esperança legislativa abstrata, trazida ao País como promessa ainda não cumprida - um dia será?), de efetiva criação de direito e respeito às crianças e adolescentes9 .
o aluno a se preocupar efetivamente com a vida real dos milhares - talvez milhões | - |
Muito bem, o ECA foi incorporado por algumas escolas (e desprezado por outras, mas para o que estamos a falar não importa), que o estudam em sala de aula. Mas, até o presente momento, pela pesquisa efetivada, não soubemos de estudos que levassem de crianças e adolescentes que vivem em abandono material e moral. Não se vê em nenhuma grande cidade professores e estudantes de direito aqui e ali cuidando desses seres humanos literalmente jogados nas sarjetas das esquinas abandonadas. Na escola de direito tudo é perfeito a acabado. O ECA é encarado em sua perfeição garantidora de direitos; é estudado em sua forma abstrata, que reduz desigualdades, respeita a dignidade dos menores, protegendo-os contra os abusos etc. Enfim, tudo se dá como se não houvesse mais problemas a resolver; na sala de aula a abstração do conteúdo transmitido suprime a violência real do mundo, isolando e alienando o estudante. E isso se dá praticamente em todas as disciplinas, desde as que estudam apenas e tão-somente textos de leis e normas como as demais que não o fazem.
Não pode surpreender depois que, ao julgar um caso, o juiz, investido dessa proposta alienante, dando as costas às pessoas cujos direitos estão sendo ali postos para discussão e exame - e muitas das vezes trazendo um drama por elas vivido -, decida o caso com meras abstrações vazias de conteúdo real e/ou ritualísticas procedimentais que estão a quilômetros de distância de seu verdadeiro mister, que é fazer Justiça no caso concreto. Ele nem sequer é capaz de entender o que se está aqui a expor. É vítima do processo, como todos os demais estudantes, e acaba fazendo o mal - ao invés do bem, para o qual deveria ter sido preparado -, na medida em que é mero instrumento de manutenção de um sistema injusto, arbitrário e que não tem na ética nem na métrica científica a base do “conhecimento” produzido.
3. O modelo não difere de escola para escola
Por aquilo que consta, tanto as chamadas escolas de primeira linha como as demais adotam o mesmo modo de produção do “conhecimento jurídico”. Apesar de não podermos aqui fazer essa afirmação categórica em relação a todas as instituições de ensino - uma vez que nossa pesquisa não está terminada -, podemos afirmar, sem receio de errar, que, ao que tudo indica, o modelo é amplo e geral, pois isso se reflete na maneira uniforme de atuar de quase todos os operadores do direito - já falaremos das exceções -, bem como pode ser verificado na leitura de sua produção técnica, especialmente livros didáticos, mas também nas demais obras que cuidam dos diversos setores normativos do sistema: há uma cansativa e monótona repetição das mesmas fórmulas produzidas, já agora secularmente adotadas pela escola de direito. Em alguns setores localizados, inclusive, o que muda é apenas a editora e o nome do autor, pois, de regra, o conteúdo se apresenta quase sempre muito semelhante.
As exceções não se dão por diferenças no ensino de cada escola, mas pela qualidade especial dos alunos: alguns são melhores que outros nos seus esforços pessoais de produzir um novo conhecimento. Isso, desde logo, garante que se possam implantar métodos modernos de ensino, os quais estão expostos nos livros do professor Paulo
Freire10 , o que, na extensão desse trabalho, não há como abordar11 . Do mesmo modo, esse resultado autêntico e excepcional acaba aparecendo nas obras de alguns pesquisadores e professores autodidatas, que ao molde de Machado de Assis (um autodidata exemplar), são capazes de escapar do quadro fechado e dogmático imposto pela escola da qual vieram e na qual exercitam sua profissão. Todos eles, alunos e professores, são, de um lado, heróis que buscam saídas para que um dia se produza verdadeiramente um conhecimento jurídico profundo e ético - e, quicá, também científico, por que não? - e de outro, a prova de que é possível, sim, pensar num outro modelo e método de ensino.
4. A exposição ou o cuspimento do saber
4.1. O despejar de informações
É conhecida a expressão dos empresários que exploram a educação universitária no Brasil (especialmente cursos de direito, administração de empresas e economia): ”Montam-se esses cursos dada a facilidade de fazê-lo: é só cuspe e giz”. E, claro, um prédio.
A afirmação está longe de ser falsa e, infelizmente, reflete um problema muito mais grave e profundo: o da mentalidade não só do quadro dirigente das escolas como dos professores que compõem o corpo docente. A maior parte desses professores acredita mesmo que é capaz de “ensinar” seus alunos “cuspindo” neles seu próprio conhecimento. Só isso, desde logo, é altamente desestimulador ao aluno que quer aprender de fato. O aluno, postado diante desse professor, percebe, muitas vezes, que, talvez, valesse a pena ficar em casa lendo um livro que trate do mesmo assunto do que ficar ali em posição de sentido, olhando para cima - às vezes com prejuízo do próprio pescoço -, vendo e ouvindo o professor declamar aquilo que consta do livro. Muitas dessas vezes o livro é de autoria do próprio professor e daí a situação piora, pois o professor repete ipsis literis o que escreveu.
Nesse despejar oratório de supostos conhecimentos - que não pode nem precisa ser eliminado, mas colocado em outros termos didáticos num novo quadro pedagógico a ser incrementado - é freqüente que o expositor não dê chance ao aluno-ouvinte sequer de fazer perguntas, questionar o que ouve. Sua fala deve ser digerida como um alimento que se lhe penetra pela goela sem nenhuma possibilidade de mastigação. De fato, funciona com um remédio amargo que o expositor pressupõe seja capaz de curar a ignorância do ouvinte. Goste ou não do sabor, não importa: é o paladar do aluno-ouvinte-deglutidor que deve adaptar-se.
É curioso notar o comportamento de alguns desses professores, que, às vezes, organizam as possíveis falas de seus alunos-ouvintes: alguns permitem perguntas ao final da exposição. Nesse caso, o defeito está em que nem sempre o aluno ainda lembra da dúvida e, se lembra, por certo o resto da sala não lembrará, e a pergunta que poderia ser socializada com aproveitamento para todos fica, então, com sua capacidade de produção dialética reduzida.
Outros admitem que sejam feitos apenas dois ou três questionamentos, como se fosse possível defini-los em termos quantitativos a priori. Há os que simplesmente não permitem questões e aqueles que não as respondem. Nesse último caso, é verdade, poderia ser uma tática pedagógica: devolver ao aluno a questão em forma de novo questionamento para juntos decidirem por uma saída. Isso seria pedagogicamente válido; não é disso que se está tratando, mas pura e tão-somente dos que não respondem, fingem que respondem ou dizem que esse tema não é da sua seara. Perde-se, pois, oportunidade de realizar uma boa discussão que permita a produção de algum conhecimento que surja na sala de aula pela participação ativa do aluno - ainda que o método de trazer o conteúdo tenha sido unilateral.
4.2. A “phdite” ou “doutorite” (irmãos da “juizite” e da “promotorite”)
Aliado ao problema da crença na exposição como método capaz de proporcionar o conhecimento - com as falhas próprias de alguns expositores, como vimos, em alguns poucos exemplos lembrados - há situações agravadas, fruto de problemas de formação pessoal de certos professores, psicológica e, metodologicamente falando, que refletem antes insegurança que conhecimento, antes desprezo que capacidade pedagógica. São casos verificados que abordam o que intitularemos de “phdite” ou “doutorite” (irmãs da “juizite” e da “promotorite”). Não estamos, de modo algum, sugerindo que o que vamos dizer aplica-se a todos os profissionais e, aliás, longe disso, nem mesmo a um grande número, mas não podemos deixar de fazê-lo, especialmente porque algumas dessas situações são já lugares-comuns bastante conhecidos. Além do que, parece-nos, a escola de direito tem parcela de responsabilidade nisso, visto que não está sendo capaz de impedir que seus egressos assim se comportem.
Ficam aqui e desde já, pois, duas observações obrigatórias. A primeira, a de que, embora o número de casos patológicos ser considerável e preocupante, ao que tudo indica - apesar de não conhecermos nenhum dado estatístico e nossa avaliação ser ainda mais acidental e indutiva -, fruto da pesquisa até agora implementada e da experiência acumulada de quase trinta anos de vivência no setor (desde, portanto, as bancos escolares na faculdade de direito) -, ao que tudo indica, a maior parte dos professores, juízes e promotores do País não sofre dessas inflamações. No entanto, temos de nos preocupar porque o número de profissionais afetados pela patologia nos diversos setores é bastante expressivo.
Pois bem. Dentre as várias “ites” (em terminologia patológica, inflamação - conjuntivite, amigdalite, artrite etc.) uma das mais devastadoras para o ensino e,
prepotência que permite o abuso - aliás, ilegal - sobre suas vítimas-alunos |
portanto, nefastas, é aquela que chamamos, como já adiantado, de “phdite” ou “doutorite” - na área jurídica, irmã da “juizite” e da “promotorite” -, conhecida de todos. A conquista legítima dos doutores, às vezes, se faz acompanhar, de certo ar de superioridade, como se essa conquista significasse uma capacitação ampla e ilimitada que os retirasse de sua própria humanidade: tornam-se senhores à imagem de deuses. Não que pelo simples fato da obtenção do título eles sejam retirados da profunda alienação em que já ingressaram e em que ainda emergidos estão. Não. Continuam eles a repetir o mesmo processo, ditando a mesma cantilena, agora agravada com a inflamação. Esta faz acrescer à lenga-lenga a arrogância, a
O incrível é que esse tipo de inflamação mental não atinge apenas os doutores, mas também os mestres e aqueles que nem isso são: há uma incrível tendência doentia nos mais jovens - ex-recém-formados ou, ainda que formados há longa data, exrecém-içados à condição de “professor” - de se comportarem com a mesma “ite”, nesse caso “mera” “professorite”. Se, na hipótese do doutor, o dado marcante é a prepotência, na “professorite” a característica é a insegurança, e, talvez, incapacidade de admitir que ainda não sabe o suficiente para não estar inflamado12 .
Aliás, já que se está a falar de prepotência e insegurança, e para não perder a oportunidade, ambos os vícios são verificáveis na “juizite” e na “promotorite”. Como regra, - haverá, claro, desvios mais profundos -, o que se constata é:
a) primeiro, um desvio-padrão antes mesmo do ingresso na carreira; são pessoas inseguras na origem, com problemas psicológicos, que, por isso mesmo e inclusive, procuram a profissão de juiz ou promotor - consciente ou inconscientemente - para exatamente quando ocuparem o cargo despejarem sua bílis; b) primeiro, também - que pode ser adicionado ou não ao anterior -, um problema de má educação: trata-se pura e simplesmente de pessoa mal-educada, incapaz de respeitar o outro como ele merece; c) segundo, pode tratar-se de imitação do modelo de professor cujo exemplo acadêmico o candidato a juiz e promotor, quando no cargo, quer seguir. Ele, então, copia o modelo autoritário, prepotente e arrogante do professor:
c.1) porque lhe agradou - e, aí, há inconscientemente uma nota dos itens “a” e “b” supra; c.2) porque, alienado, ele pensa que esse é o melhor modelo a ser seguido; c.3) porque, alienado, ele pensa que esta é a melhor - às vezes, pensa que é a única - maneira de se dar bem na profissão; d) segundo, ainda - o que pode surgir adicionado ou não ao aspecto do item “c” -, pode tratar-se de imitação do modelo de profissional. O candidato ao cargo acaba se comportando de modo idêntico ao do profissional-objeto, exatamente nos mesmos moldes apontados nos subitens “c.1”, “c.2” e “c.3”, vale dizer, o candidato ao cargo copia o modelo autoritário, prepotente e arrogante do profissional:
d.1) porque lhe agradou - e, aí, há inconscientemente uma nota dos itens “a” e “b” supra; d.2) porque, alienado, ele pensa que esse é o melhor modelo a ser seguido;
maneira - de se dar bem na profissão |
d.3) porque, alienado, ele pensa que esta é a melhor - às vezes, pensa que é a única
Apenas para ilustrar nosso discurso, anote-se o caso que ficou nacionalmente conhecido do magistrado carioca que pôs para fora sua inflamação num dos mais clamorosos eventos de “juizite” de que se tem notícia. Trata-se do pleito judicial feito por ele, no qual foi requerido que o Poder Judiciário obrigasse o funcionário do condomínio em que ele morava a não chamá-lo por “você” (não nos esqueçamos que foi um advogado que assinou a peça e que, inclusive, o pleito foi deferido pelo
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, liminarmente pelo Desembargador Relator)13 .
Fizemos questão de colocar esse caso apenas para poder perguntar: é a escola de direito a culpada por esse tipo de conduta? Será que a escola de direito, realmente, não é capaz de formar quadros que possam compreender melhor sua função social? Esses exemplos são meras passagens isoladas de alguns profissionais que se perderam no caminho?
A verdade é que, ao que consta, a escola de direito não tem sido capaz pelo menos de evitar que delas saiam profissionais que não conseguem conhecer seu próprio papel social e suas obrigações enquanto tal. Veja-se o relato na sequência.
4.3. A confusão de papéis A alienação em que estão inseridos alunos e professores, fruto, em parte, do modelo educacional imposto, tem gerado fatos que, ao mesmo tempo que mostram as vicissitudes desse modelo educacional, clamam por uma reforma urgente. O evento abaixo é real e ocorreu nos idos dos anos 1990 na PUCSP, na Faculdade de Direito.
Um professor, que tinha como profissão, além da de dar aulas, ser Promotor de Justiça, gerou uma situação inédita. Certo dia, ao fazer chamada, ele pegou “em flagrante” um aluno respondendo chamada por outro, ausente. Disse: “Qual seu nome?”, apontando para o jovem que respondera “presente” pela segunda vez. O rapaz disse o nome e o professor pôde confirmar que se tratava de outro aluno. Instaurou-se imediatamente uma confusão: o professor queria levar esse aluno para a Delegacia de Polícia para determinar sua prisão em flagrante por ter cometido um certo crime de falsidade. Se não tivesse sido chamado o Diretor da Faculdade, que acalmando o dito professor, convenceu-o a não realizar tão mirabolante proeza, sabese lá o que teria acontecido.
Esse episódio ilustra bem a confusão de papéis que atingem os “professores” de direito que ostentam outras profissões jurídicas. Sem formação pedagógica adequada, eles ingressam na sala de aula, muitas vezes, como se estivessem na outra profissão que exercem. Ocorre por isso de o juiz “condenar” o aluno a ser reprovado ou “absolvê-lo” para que ele passe, o que não tem, evidentemente, nenhuma relação com avaliação. Há também o Promotor de Justiça que “acusa” o jovem de ser mal aluno, de que ele não faz as tarefas etc., acusação incabível em ordenamento pedagógico sério. Essa confusão de papéis é fruto da incapacidade de auto-reflexão do professor que não recebeu da escola adequada formação que lhe permitisse não deixá-la influir em seu comportamento social. (Esse tipo de confusão não está adstrito às profissões jurídicas, evidentemente, pois é problema generalizado, e também não está restrito à escola: acontece, por exemplo, de o juiz condenar o próprio filho que não estuda ou não come ou não dorme na hora que ele determina; de o Promotor de Justiça acusar o filho do mesmo modo etc.)14 .
Esses problemas, envolvendo certos professores, levam-nos a pensar a questão da avaliação, o que faremos na seqüência.
5. A negação da individualidade do aluno ou o problema da avaliação
5.1. Avaliar e não decidir
Chegamos agora ao inferno: os professores reclamam que é o pior momento de seu trabalho acadêmico, mas nós sabemos muito bem que o sofrimento está do outro lado da linha; está no corpo discente. Na verdade, todos nós que já estudamos passamos por isso, nos mais variados graus de nossa formação: a tortura praticada por professores na prática opressiva da avaliação. Seria preciso medir o desgaste psicológico que sofrem as crianças, os adolescentes e os universitários nos períodos pré e pós-avaliatórios. A insegurança e a pressão psicológica é tamanha que não é raro os alunos adoecerem. Por que há de ser assim?
O mais impressionante é que ao chegar no terceiro grau o método de avaliação não se altera (com raras e louváveis exceções), e, claro, na faculdade de direito não é diferente. É no momento da avaliação que mais se aprofunda o divórcio existente entre professores e alunos. Parece que nesse momento a desconfiança toma conta de pessoas que se opõem: de um lado, o professor-opressor15 , incapaz de acreditar na honestidade do aluno, que se submeterá a todo tipo de teste; de outro, os alunosoprimidos, colocados numa clara situação de inferioridade, como pedintes que suplicam para que as questões não sejam esdrúxulas, surpreendentes, enigmáticas, obscuras, e toda sorte de penosas alternativas que se lhe podem abrir. Lembre-se que, na escola de direito - e, aliás, também nos concursos públicos -, não é incomum a aplicação daquilo que chamamos sistema “Gugu” de avaliação, isto é, perguntas que funcionam como “pegadinhas”, essa nefasta doença que domina o sistema televisivo.
O sofrimento da véspera das avaliações, postas como expectativa normativa negativa por parte dos alunos, que apenas podem tentar imaginar o que se lhes será perguntado, só pode ser comparado ao sofrimento da espera pelo resultado da avaliação. Nesse aspecto, a faculdade de direito, em algumas disciplinas, dadas suas peculiaridades, que impõem questões e respostas argumentativas, gera uma verdadeira expectativa dramática. É o ponto em que os abusos podem ser amplamente praticados pelos professores. Em vez de se colocarem numa perspectiva avaliativa-cognitiva, eles, podendo fazer avaliações pautadas por critérios subjetivosautoritários, apenas decidem - sem necessariamente apresentar fundamentos legítimos - que nota devem “conferir” ao aluno. Os estudantes de direito sabem disso e, claro, sofrem violentamente.
Os professores reclamam: mas o que fazer? Eles colam? Ora, eles colam? Os alunos, o tempo todo, apresentam suas respostas apenas e tão-somente no sistema que não foi por eles criados. Se o professor acaba descobrindo alunos colando, isso apenas prova que é o sistema que permite essa atitude. Fosse outra a forma de avaliação e, evidentemente, não existiria cola. Quando, por exemplo, é pedido ao aluno que, como forma de avaliação, elabore uma monografia, que depois ele vai defender numa
sobre ele, a pesquisa que engendrou, os livros que leu etc.) |
banca (ainda que, evidentemente, os abusos possam também se repetir nas bancas pelos argüidores), o resultado é completamente diferente (nota: antes que se objete que também é possível produzir fraude em monografias, queremos deixar consignada a falácia desse argumento: se existe orientador que acompanha o aluno na produção, e se essa produção é cobrada legitimamente numa banca, é raríssimo - senão impossível - que se possa perpetrar uma fraude. Se ela existe, o que em termos humanos é sempre verificável, e não foi verificada durante o processo de elaboração e argüição, a falta deve ser imputada mais ao orientador e especialmente à banca, posto que, por evidente, é dificílimo a quem não elaborou o trabalho falar
5.2. O resultado da avaliação
A avaliação, de qualquer modo, dificilmente satisfaz os melhores alunos. Os outros, isto é, aqueles que, digamos assim, não “estudam” convenientemente, conforme determina o sistema, sujeitam-se à nota conferida, tanto mais se realmente não se esforçaram. Mas os que se dedicam, esforçam-se e superam o solicitado nunca aceitam menos que o máximo (10, 10 com louvor ou A, ou A+). Qualquer nota menor que isso será altamente insatisfatória. Percebe-se, pois, que a nota gera apenas frustração, uma vez que, se confirma a expectativa do aluno, é óbvia a aguardada, e se não o faz, frustra. Pior: nos dois casos oprime, visto que o aluno nunca sabe a priori como será avaliado, se a avaliação será justa, objetiva, isenta; vive e sobrevive dos sobressaltos da tensão pré-avaliação.
5.3. Provas e avaliações não geram bons profissionais
A melhor demonstração de que o sistema de ensino e avaliação não é adequado está no resultado. Os egressos das faculdades de direito, dirigindo-se aos concursos das carreiras jurídicas, apesar de alguns deles ser altamente concorridos, acabam não se tornando bons profissionais, demonstrando no exercício da profissão toda sorte de erros técnicos e de falta de conduta ética. São petições mal feitas, acusações equivocadas, decisões erradas, desprezo pela pessoa humana dos envolvidos nas questões jurídicas. Não resta dúvida, pois, que a escola de direito merece reforma de ordem pedagógica.
6. Conclusão
Como dito, esse texto é apenas um ensaio, com apontamentos para uma crítica ao ensino do direito. São, pois, questões postas em aberto, para que se possa pesquisar e pensar mais sobre os assuntos abordados.
E, para terminar, dentro da perspectiva de inspiração que fundamenta nossa análise, não poderíamos deixar de, mais uma vez, citar Paulo Freire, o que faremos na transcrição de uma de suas percucientes análises:
Parece-me “demasiado óbvio que a educação de que precisamos, capaz de formar pessoas críticas, de raciocínio rápido, com sentido do risco, curiosas, indagadoras não pode ser a que exercita a memorização mecânica dos educandos. A que ‘treina’, em lugar de formar. Não pode ser a que ‘deposita’ conteúdos na cabeça ‘vazia’ dos educandos, mas a que, pelo contrário, os desafia a pensar certo. Por isso, é a que coloca ao educador ou educadora a tarefa de, ensinando conteúdos aos educandos, ensinar-lhes a pensar criticamente. O aprendizado de um conteúdo que se dê à margem de ou sem incorporar o aprendizado maior que é o da rigorosidade do pensar no sentido da apreensão da razão de ser do objeto não possibilita a indispensável rapidez de raciocínio para responder àquela exigência. É tão fundamental, por outro lado, a prática do pensar certo para o confronto de novos desafios que as inovações tecnológicas nos põem hoje quanto a liberdade de criar. Uma educação em que a liberdade de criar seja viável necessariamente tem de estimular a superação do medo da aventura responsável, tem de ir mais além do gosto medíocre da repetição pela repetição, tem de tornar evidente aos educandos que errar não é pecado, mas um momento normal do processo gnosiológico” 16 .
7. Bibliografia
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 37. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
_. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
_. Política e educação. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
_. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000.
_. Pedagogia da autonomia. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: UnB, 1985.
RANCIÉRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
RIZZATTO NUNES. Manual de filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2004.
_. Manual de introdução ao estudo do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
_. O Poder Judiciário, a ética e o papel do empresariado nacional. In: Uma nova ética para o juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
_. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002.
WEBER, Max. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1944.
[2] Texto extraído de artigo de Alípio Silveira, in Jornal da Tarde, São Paulo, 10-4- 1999, caderno de sábado, p. 1.
[3] No sentido weberiano do termo. (Para uma análise do conceito de tipo ideal, consultar Max Weber, Economia y sociedad, p. 706 e 1057.)
[4] A questão de saber se essa realidade é, de fato, empírica ou racional remete à discussão para os métodos científicos.
[5] Ob. cit., mesmas páginas.
[6] Na verdade, é da noção de sistema que depende grandemente o sucesso do ato interpretativo. A maneira pela qual o sistema jurídico é encarado, suas qualidades, suas características são fundamentais para a elaboração do trabalho de interpretação.
[7] Haverá, claro, também conflitos internos do próprio texto constitucional, entre princípios e normas. Para o exemplo que estamos dando, contudo, basta o explanado. (Para um exame mais acurado desse tipo de conflito, ver nossos Manual de introdução ao estudo do direito, Cap. 6, e O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, Caps. 5 e 6.)
[8] Para mais dados sobre a noção de sistema jurídico, antinomias, lacunas etc., consulte nossos Manual de introdução ao estudo do direito e O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana nos mesmos capítulos acima referidos.
[9] Há, no Brasil, um drama particular conhecido: é o da criação de leis produzidas apenas para vender a nesperança, sem nunca tornar-se eficaz. A respeito desse assunto: Tércio Sampaio Ferraz Junior, Teoria da norma jurídica”, passim, e o nosso Manual de filosofia do direito, Cap. IV - A finalidade da lei.
[10] Ver bibliografia.
[1] A respeito do assunto, ou seja, da capacidade do próprio aluno desenvolver-se independentemente do ensino oferecido pela escola ou pelo professor, leia-se O mestre ignorante, de Jacques Rancière, que também nos inspirou nessa pesquisa.
[12] Não há espaço para o desenvolvimento desse problema aqui. De todo modo, anote-se que nos jovens se constata ainda uma espécie de “macaquice”: o professor jovem copia o modelo do professor que ele admira e segue seu padrão arrogante, autoritário etc. De oprimido, passa a opressor. É um dos produtos desse modelo autoritário de educação. (Para mais elementos a respeito da opressão da relação educacional, consulte a obra já citada de Paulo Freire Pedagogia do oprimido, passim.
[13] Há, infelizmente, inúmeros exemplos de juizite, promotorite, professorite, phdite etc., que em outra oportunidade traremos à baila.
papel do empresariado nacional |
[14] Para mais detalhes sobre os papéis sociais e seus problemas, consulte Niklas Luhmann, Legitimação pelo procedimento, e nosso O Poder Judiciário, a ética e o
[15] Vamos aqui utilizar as expressões cunhadas por Paulo Freire, opressor e oprimido, temas que desenvolveremos no trabalho que estamos a pesquisar.
[16] Pedagogia da indignação, p. 100.
fonte: disponível em: http://w.saraivajur.com.br/menuesquerdo/doutrinaArtigosDetalhe.aspx?Doutr ina=695
** publicado em: NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Apontamentos para uma crítica à pedagogia no curso de direito. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica vol. 1, n. 3, Porto Alegre: IHJ. 2005. 175-194p.
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